Chicken Tax e o Fim da Era Industrial: O Valor Agora É Intangível

O passado tarifário e o presente invisível
Em 1964, os Estados Unidos — maior mercado consumidor do planeta — tomaram uma decisão que marcaria para sempre a indústria automotiva global. Em resposta às restrições impostas pela Europa ao frango norte-americano, o governo americano estabeleceu uma tarifa de 25% sobre a importação de caminhonetes leves. Surgia a icônica Chicken Tax: um imposto com nome inusitado, mas com efeitos profundos e duradouros.

Durante décadas, montadoras japonesas e alemãs precisaram improvisar. Algumas abriram fábricas em solo americano; outras passaram a desmontar os veículos antes do envio ou desenvolver versões específicas para escapar da tributação. O resultado foi uma blindagem da indústria de pick-ups nos EUA, empurrando a concorrência para as margens do mercado.

Esse episódio ajuda a ilustrar uma era em que a força de uma economia era medida em toneladas de aço, colheitas e produção fabril. O direito tributário internacional foi moldado sobre essa lógica: tarifas como ferramentas de proteção, geração de empregos e conquista de mercados. O valor estava no produto físico, palpável — o centro da equação econômica global.

Da matéria-prima ao imaterial
Mas o jogo virou. Hoje, o verdadeiro valor não está mais no metal das montadoras, mas no código-fonte que guia o volante, na experiência do usuário e no domínio sobre dados e plataformas digitais. Tesla, BYD e tantas outras valem mais por seus algoritmos, soluções energéticas e capacidade de inovação do que pelo volume de aço utilizado.

Montadoras tradicionais como GM, Toyota e Volkswagen já entenderam isso. Correm para se reinventar como empresas de tecnologia, disputando engenheiros de software com startups e gigantes digitais do Vale do Silício.

O retorno das tarifas — mas em outro mundo
Mesmo assim, o protecionismo à moda antiga reaparece. Em 2024, o governo Biden anunciou novas tarifas sobre veículos elétricos, semicondutores e painéis solares chineses. Já em abril de 2025, o presidente Donald Trump elevou a aposta: anunciou tarifas de, no mínimo, 10% sobre qualquer produto importado de mais de 180 países.

Só que o cenário mudou. Se a Chicken Tax do passado impactava linhas de montagem, o desafio hoje está nas nuvens, nos dados, na inteligência artificial. O valor das maiores empresas do planeta está nos ativos intangíveis. Em 1975, só 17% do valor das empresas do S&P 500 vinha desses ativos. Hoje, ultrapassa 90%. São patentes, marcas, softwares, dados e capital humano. E, convenhamos, não há como tarifar uma linha de código transmitida via satélite.

O mundo todo na corrida intangível
Esse fenômeno é global. A União Europeia busca formas de proteger sua indústria frente às big techs dos EUA e da China, mas enfrenta o desafio de acelerar sua capacidade de inovação em IA, semicondutores e ciência de dados. O Japão, referência histórica em manufatura, aposta na robótica e inteligência artificial aplicada. E países emergentes, como o Brasil e a Índia, tentam deixar de ser apenas fornecedores de commodities para atuar também como criadores de valor digital.

Mesmo assim, 60 anos depois, a Chicken Tax ressurge como uma relíquia que não se adapta ao presente. Seu poder de proteção é limitado em um mundo onde, para cada picape, surgem dezenas de startups propondo novas formas de mobilidade via apps, carros elétricos e inteligência artificial embarcada.

Do digital ao ESG: valor que não se toca, mas se sente
A transformação não é só digital. Ela dialoga com outra agenda disruptiva: o ESG. Hoje, o valor de uma empresa — e de uma nação — também se mede por sua capacidade de inovar com propósito, aderir a padrões de sustentabilidade e gerar impacto social positivo.

Investidores e consumidores querem saber como o produto é feito, seu impacto ambiental, como os dados são governados e o quanto a empresa se compromete com diversidade e inclusão. Confiança, reputação, ética e propósito são ativos duradouros. Nenhuma tarifa resolve questões como pegada de carbono, transparência algorítmica ou circularidade de materiais. O verdadeiro valor agora está em como se constrói — e comunica — um futuro responsável.

Tarifas compram tempo. Inovação constrói o futuro.
A grande lição? Países que insistirem em proteger fábricas enquanto negligenciam dados, talentos, inovação e responsabilidade ambiental ficarão para trás. Tarifas podem retardar transformações, mas não garantem relevância no longo prazo.

O século XXI pertence aos que entendem que o futuro é intangível, conectado, invisível — e valioso. E que inovação responsável, ancorada em princípios ESG, é a ponte entre competitividade e perenidade.

A Chicken Tax mostrou que tarifas podem proteger mercados. Mas o que constrói valor mesmo é a capacidade de se reinventar. E o futuro já está sendo moldado por quem entendeu isso a tempo.

Autores:

Luis Wolf Trzcina – Mestre em Direito Tributário no Brasil e nos EUA e professor do MBA da FGV.

José Andrés Lopes da Costa – Advogado, mestre em direito tributário internacional e desenvolvimento pelo IBDT-SP e sócio do DCLC Advogados.

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